Meu artista preferido foi cancelado, e agora?

É possível separar a obra do artista?

Startup da Real
6 min readFeb 9, 2021

Tenho quase certeza que um artista te decepcionou esse ano.

Você deve conseguir pensar em alguém que admirava o resultado dos trabalhos, mas uma posição especifica transformou essa admiração num poço de decepções.

Ainda mais na ala progressista, onde as pautas estão cada vez mais amplas e mobilizadas, é muito fácil encontrar um artista que fere algum valor fundamental de respeito à vida e diversidade.

Até 2010, a maioria das pessoas que hoje entende a importância da causa trans provavelmente não reagiria com tanta repulsa aos comentários de J.K Rowling.

E o fato de que as pessoas estão mais exigentes com o que seus ídolos dizem é bom. Deixar de normalizar formas de opressão que são tão comuns é um passo importante para uma sociedade mais justa e igualitária.

Mas eu sei que essa questão só é fácil de opinar até o momento que o meu artista preferido, aquele que escreveu ou produziu uma obra que me definiu como pessoa, que ajudou na minha formação como ser humano, fala alguma besteira inaceitável.

Quando isso acontece, você para e pensa: é possível separar a obra do artista?

É preciso deixar muito claro aqui minha intenção de apenas olhar para o assunto com uma abordagem mais objetiva, sem definir uma verdade absoluta sobre como devemos agir ou proceder nestes casos.

Mais ainda, lembrar que ninguém é obrigado a gostar ou deixar de gostar de ninguém.

Por um lado, entendemos que dar dinheiro e audiência para pessoas que sustentam discursos socialmente nocivos, e até mesmo violentos, é um problema. Sabemos que, quanto mais recursos econômicos e visibilidade essa pessoa conquista, maior o alcance de suas posições reprováveis.

O impulso de deixar de consumir, e incentivar que outros façam o mesmo, é quase que imediato. Afinal, quem iria gostar de ver alguém que promove discriminação ou violência contra um grupo tendo sua voz cada vez mais amplificada.

No entanto, é fácil fazer essa cobrança para os outros quando não é o seu artista preferido que falou alguma besteira.

Agora imagine quem passou os últimos 20 anos assistindo Harry Potter repetidas vezes. Uma pessoa que colecionou roupas, toalhas, camisetas, diferentes versões dos livros, quadros, posters e tatuagens, precisando abandonar toda memória afetiva de uma vida inteira porque a autora é assumidamente transfóbica.

Aqui, tudo fica muito mais confuso.

A primeira pergunta que acredito que devemos levantar para encontrar uma saída para este dilema é:

É possível uma pessoa ruim produzir arte boa?

Mesmo com o impulso de responder não, essa pergunta é mais traiçoeira do que parece. Afinal, antes de saber da posição repreensível do artista, nós já gostávamos da obra.

Então, por mais que exista o impulso de negar a qualidade de algo produzido por uma pessoa ruim, é inegável que artistas que consideramos repulsivos podem produzir um bom trabalho. E isso nos leva para uma segunda pergunta:

Todo trabalho produzido pelo artista reproduz os pontos negativos da sua visão de mundo?

Não necessariamente.

Mesmo sabendo que na produção cultural, quando uma visão de mundo não é desafiada ela serve automaticamente de reforço, existem diferentes dimensões e abordagens entre questionamentos e reforços.

Um artista pode ser machista na sua vida pessoal, ao mesmo tempo que produz excelentes obras de questionamento da causa racial.

E aqui entra um pouco da minha conclusão pessoal sobre o assunto.

Eu sou fã de um rapper chamado Baco Exu do Blues.

Para mim, ele produziu dois dos mais complexos e viscerais álbuns de rap que eu já ouvi. Existe profundidade, lírica, referências e uma força para falar sobre problemas raciais que dificilmente encontramos em outras produções.

Mas logo depois que sua fama estourou, diversas polêmicas sobre a vida pessoal do artista começaram a circular na internet.

O ponto mais grave é uma acusação de assédio, que sua ex-namorada negou ser verdade, mas que é um assunto muito sério para deixar passar.

Do ponto de vista cultural, Baco ganhou projeção com uma música chamada Sulicídio, exaltando a cultura nordestina e questionando o monopólio sul-sudeste na cena do rap. Apesar de todo esse barulho, Baco se mudou para São Paulo depois do sucesso e abandonou grande parte de suas referências nordestinas.

É acusado por ex-colegas e pela cena nordestina de ser hipócrita e ter deixado essas raízes depois da fama.

Além disso, é comum ouvir que ele não entende da rua, de favela, que é playboy e várias outras questões que colocariam Baco Exu do Blues, mais uma vez, como hipócrita.

Não conheço o rapper pessoalmente e não acompanho o que acontece na vida do artista. Tudo o que disse acima foram informações que recebi todas as vezes que comentei que gostava das músicas dele.

Mas seus dois principais álbuns são excelentes.

E aí? Eu deveria parar de ouvir a música produzida pelo Baco?

Os álbuns Bluesman e Esú são obras primas da música. São álbuns — particularmente considero — com uma abordagem inédita no rap e com uma importante mensagem sobre racismo, realidade marginalizada e representação cultural. Não enxergo, em nenhuma das músicas desses dois álbuns, traços dos problemas que me incomodam na reputação pessoal do artista.

E a história do Baco é apenas um em vários exemplos similares que, numa internet onde notícias correm tão rápido, quase todo dia uma história bem pouco agradável sobre um artista que admiramos em algum aspecto chega aos nossos ouvidos.

Minha posição, pelo menos até o dia 22/10/2020 às 12:23, e que pode mudar a qualquer momento, é olhar para o que a obra diz sozinha, independente do que o artista e sua reputação carregam.

A mensagem dos álbuns que gosto são fortes e importantes o suficiente para não serem ofuscadas pelos problemas que o artista carrega. Se saírem outros álbuns com direções contrárias e visões que considero repulsivas, certamente vou me posicionar e rejeitar a nova abordagem.

Mas — eu acredito — uma obra existe sozinha no seu tempo.

O que me faz conseguir separar o artista da obra, atualmente, é tentar entender se a obra carrega o que considero negativo no artista. Se J.K Howling escrever uma nova saga de livros com uma abordagem transfóbica, é completamente justo que os fãs de Harry Potter rejeitem o material.

Mas para mim, não faz sentido renegar uma obra inteira, que está concluída e fixada na história, por declarações que o autor fez 20 anos depois.

Faz sentido para mim que a mensagem da obra seja vista isoladamente, mesmo que o artista em questão não seja digno de admiração.

Uma questão que todo esse dilema me remete, é o quanto estamos presos ao culto da personalidade. Sentimos a necessidade constante de exaltar como gênios pessoas que fazem trabalhos que gostamos, quando na verdade essas pessoas podem até produzir alguns trabalhos muito bons, mas em suas vidas privadas não fazem nada de muito admirável.

Admirar pessoas por suas obras é um caminho que me parece inevitável, mas pisar no freio e lembrar que nem sempre a obra é um reflexo das qualidades pessoais de um artista pode nos ajudar a respirar no meio dessa confusão.

E é claro, cada tema carrega uma sensibilidade que todos sentimos de forma diferente. É completamente compreensível que pessoas reajam em intensidades diferentes de acordo com cada polêmica. Ninguém é obrigado a continuar gostando de nada, e muitas vezes é difícil não projetar na obra o desgosto causado por um artista.

Mas como pessimista que me assumo, sinto que é importante saber colocar cada peça no seu lugar.

Acho que se for parar de consumir tudo de todo mundo que me decepcionou, nunca mais vou gostar de nada de nada na vida.

Obs: este texto foi originalmente enviado na newsletter Alt+Tab, no dia 22/10/2020 e não esta diretamente vinculado à polêmicas posteriores a esta data.

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Written by Startup da Real

Pensamento crítico sobre tudo o que ninguém quer contar para você.

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