Socialista pode ter iPhone?
As contradições entre ser de esquerda e o consumo
Quem me acompanha sabe que eu gosto de tênis.
Tenho uma coleção até meio humilde, quando comparada aos grandes colecionadores, mas que assusta quem não faz parte desse mundo.
Como não são itens baratos, é claro que existe um critério de ostentação e consumo por trás de uma coleção de tênis.
É de fato uma lógica capitalista operando e não tenho como negar isso.
Por essa suposta dissonância, sou frequentemente questionado sobre existir uma incoerência entre consumir bens de mais caros e lutar pelo direito dos trabalhadores.
Logo no primeiro dia de 2023, enquanto pegava no sono depois do ano novo, recebi uma pergunta tocando exatamente neste ponto:
Ter itens de luxo é contraproducente para defensores do comunismo/marxismo?
Eu não vou falar pelos marxistas, vou apenas explicar a minha visão pessoal sobre isso.
Antes de tudo, o que são itens de luxo?
Para os ricos, qualquer coisa que o pobre acesse além da sua necessidade mais básica de sobrevivência é considerada “luxo”.
Um pobre com uma roupa mais bonitinha? Luxo.
Um tênis novo? Ostentando.
Um celular melhor para gravar uns vídeos? Credo, esses pobres parcelam iPhone em 24x e usam pré-pago.
Paulo Guedes, ex-ministro da economia e aclamado pelo elite econômica do país, disse em alto e bom som que o dólar alto é bom porque empregada doméstica estava viajando para Disney: “uma festa só”.
O pobre não pode ter nada. Nunca.
A catadora que passou a faixa presidencial para o Lula, sofreu onda de ataques porque tinha fotos numa viagem para Europa.
O reflexo óbvio é sempre questionar como alguém pobre fez uma viagem como essas.
A viagem tinha sido por um programa do governo federal.
Quando sua vida melhora um pouco, todo mundo começa a julgar cada decisão financeira que você toma.
Como assim comprou um carro? Pode viver só de ônibus e Uber que é mais barato. Eu mesmo já ouvi algumas vezes:
nossa para que você precisa de uma SUV? Um carrinho 1.0 faz mais do que o suficiente.
Só que a gente não acessa itens de luxo de verdade.
Meus relógios todos, juntos, não compram um verdadeiro relógio de luxo.
iPhone não é produto de luxo, MacBook não é produto de luxo. São itens relativamente mais caros e por isso acabam sendo mais restritos, mas não são itens de luxo.
Essa semana eu falei no Twitter que adoraria ver programas que incentivassem os mais pobres a acessarem computadores em casa.
Fiquei assustado ao ler gente dizendo não era necessário.
Se o pobre quiser usar computador, só procurar numa biblioteca pública.
Esse argumenta ignora tanto o acesso das pessoas ao mundo digital e a importância que isso traz, quanto fragilidade do próprio argumento de usar computador só em bibliotecas públicas. Qualquer cinco minutos olhando com calma, e você percebe que não é assim que o mundo real funciona.
Só que o pobre assiste os mesmos filmes que os ricos. As mesmas novelas e os mesmos comerciais.
Cê disse que era bom e as favela ouviu
Lá também tem uísque, Red Bull, tênis Nike e fuzil
Admito, seus carro é bonito, é, e eu não sei fazer
Internet, videocassete, os carro loco
O pobre também é inundado de fontes de desejo de consumo, também entende que as pessoas vão te tratar diferente e te respeitar, por mais triste que isso seja, por causa das coisas que você tem.
Ai quando a vida melhora um pouco, vão falar para o jovem que é errado ter o tênis que sempre sonhou, o videogame que via na vitrine da loja, o celtinha 2006 que sonhou para não pegar chuva na volta para casa.
Tudo isso, para quem tem mais que os pobres, soa como luxo.
Claro que tirar dinheiro da própria comida para comprar uma roupa um pouco mais cara vai ser contraproducente.
Mas não é só isso que conta na vida.
A vida não é só comer o suficiente para sobreviver, trabalhar e dormir. Todos vivem num mundo com fortes padrões comparativos. Está todo mundo sempre olhando e julgando. Tratando diferente por causa das roupas, do que compra ou consome.
Não estou falando que é certo ou bonito, apenas que é assim que funciona.
Você não quer se olhar no espelho e se enxergar como um fodido.
Você quer se ver com os mesmos elementos que a sociedade atribui como conquistas de sucesso. Quando o assunto chega nesse ponto, sempre vem alguém para dizer
ah, mas é errado ficar se comparando, querendo usar roupas de marca só por status.
Nessa hora todo mundo é o Mahatma Gandhi evoluído.
Ninguém tem desejo, ninguém mora no mundo material ou é afetado pela comparação das coisas que acontecem na nossa vida.
Parece que é só mentalizar, que dá para viver apenas com uma ração humana apenas pelos nutrientes. Sem desejos, consumos ou vontades individuais.
Não é assim, né?
No fim, eu acredito que impulsionar a autoestima das pessoas é importante, principalmente das pessoas pobres.
É preciso se enxergar como alguém com força e conquistas. Mesmo que, de imediato, essas conquistas sejam itens até básicos.
Só que para você que acordou 5 da manhã e pegou ônibus lotado durante 20 anos, acordar uma hora mais tarde e pegar seu carrinho usado é uma conquista difícil de descrever.
Não podemos esquecer que as pessoas, além de comer e trabalhar, possuem toda uma carga emocional que não pode ser ignorada.
A parte emocional de tudo isso importa muito.
Mas sempre, em qualquer pequeno avanço, seja comprar presunto e comer no pão, ou jantar um Bigmac no McDonald’s, os olhares críticos porque você está fazendo algo que “pobre não deveria” vão surgir.
Mas vale lembrar também que em nenhum lugar Marx diz que precisamos fazer voto de pobreza. É mais fácil encontrar essa inclinação dentro da Bíblia Cristã.
Só que para mim, se um trabalhador produziu algo, a classe trabalhadora tem mais é que poder usufruir daquilo.
Aí, na época dos barraco de pau lá na Pedreira
Onde cês tavam?
Que que cês deram por mim?
Que que cês fizeram por mim?
Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho?
Agora tá de olho no carro que eu dirijo?Demorou, eu quero é mais, eu quero até sua alma
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