Talvez sua liberdade seja apenas uma forma de prisão

Mais importante do que poder fazer tudo, é poder não fazer.

Startup da Real
@startupdareal
Published in
8 min readDec 6, 2021

--

Liberdade é um argumento comum para justificar muitas decisões.

Sejam escolhas profissionais, o destino de relacionamentos amorosos ou até mesmo a próxima refeição que será feita no dia, muitos dos passos que damos na vida trazem a liberdade como fundamento principal.

A busca por liberdade é de fato importante. É um norte ideológico que guiou grandes revoluções ao longo da história.

Mas o problema mora na interpretação superficial que se tem sobre liberdade.

Nem toda forma de liberdade é igual, nem tudo que parece liberdade de fato nos faz livres.

Uma forma interessante de ilustrar essa confusão, pode ser percebida no documentário chamado Estou me guardando para quando o carnaval chegar.

A liberdade de trabalhar para si mesmo

O documentário narra a história dos moradores de Toritama, um município de Pernambuco conhecido pela intensa fabricação de Jeans.

O funcionamento da produção de calças jeans na cidade é bastante simples. Cada parte do Jeans (bolsos, braguilhas, etc..) é fabricada separadamente, e as costureiras recebem um valor específico por cada peça produzida.

Uma costureira, por exemplo, precisa fazer mais de mil de bolsos de calça por dia, ao valor de 10 a 20 centavos cada, para alcançar seu objetivo de faturamento por produtividade.

Então as pessoas que trabalham nesse mercado acordam antes do sol nascer e costuram até o início da noite, quando param, comem, e voltam para continuar trabalhando até por volta das 10 horas da noite.

Quando perguntados o que achavam da sua rotina e do seu trabalho, a resposta parece muito com os vídeos motivacionais de empreendedores no Youtube ou o argumento que os motoristas de Uber compraram quando a empresa chegou ao Brasil.

Eles dizem que se orgulham da liberdade de fazer o próprio horário, de ganhar pela produtividade e sentir que são donos do próprio negócio.

“O melhor é trabalhar para você mesmo”.

No livro A Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han explica que um dos grandes problemas da sociedade moderna, que descreve como uma sociedade do desempenho, é o excesso de Positividade.

A ideia de uma sociedade onde tudo é possível e depende apenas do indivíduo.

Neste cenário, o indivíduo se torna explorador e explorado. Ele acredita que tudo depende apenas dele, e vive uma constante cobrança interna para entregar-se cada vez mais.

O resultado são problemas psicológicos cada vez mais comuns.

Byung-Chul Han destaca:

O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de desempenho. Visto a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida.

E complementa:

O homem depressivo é aquele[…]que explora a si mesmo e, quiçá deliberadamente, sem qualquer coação estranha. É agressor e vítima ao mesmo tempo.

O filósofo avança na sua definindo duas formas do que chama de Potência (do latim Potens, aquele que pode).

A Potência Positiva é esse estado de poder fazer tudo, e a Potência Negativa, o poder de não fazer.

Existe também a necessária explicação que Potência Negativa não é o mesmo que Impotência.

Diferenciamos aqui o “poder não fazer” da Potência Negativa, e o “não poder fazer” da impotência.

Apesar de ambas formas de Potência serem importantes, muitas vezes o excesso de potência positiva pode ser apenas uma prisão disfarçada de liberdade.

Os trabalhadores de Toritama, no exemplo, têm a potência positiva de trabalhar quando quiserem, desde que não seja menos, pois afetaria seu sustento e sobrevivência.

Essa falta de liberdade é descrita por um economista popular na direita política, Frederick Hayek, que define como coerção essa ausência da liberdade de escolha, quando alguém é obrigado a agir para servir outra pessoa, respeitando o propósito do outro e não ao seu próprio.

Alguém é obrigado a aceitar um trabalho para não morrer de fome, por exemplo, não é verdadeiramente livre.

A Positividade Negativa, poder não fazer, deixou de existir.

Mas não é só no trabalho que vemos a crença de que esse exagero da potência positiva é confundida com liberdade.

Quando eu digo que sigo um plano alimentar específico, muita gente me diz que prefere ser livre para comer qualquer coisa. A ideia de não comer algo que teoricamente deseja muito parece inconcebível.

No entanto, é possível fazer uma brincadeira aqui para experimentar o sentimento desse excesso de Potência Positiva e ausência de Potência Negativa.

A pessoa que alega liberdade em comer o que quiser o tempo todo, consegue ficar um mês, por opção, sem comer alimentos considerados não saudáveis?

Não digo passar fome ou restringir a quantidade de comida, mas evitar pizza, hambúrguer, sushi, frituras, biscoitos, salgadinhos, chocolates, embutidos, doces, refrigerantes e todas essas guloseimas que tanto gostamos.

É óbvio que alguém que já não estava disposto a ter sua alimentação supostamente limitada irá falhar num desafio como esses, mas é aí que mora o problema.

Se a pessoa não é capaz de deixar de ficar sem comer besteiras por um curto período de tempo, porque acaba sendo movida pelos impulsos de comer esses alimentos não saudáveis, o quanto esse argumento de ser livre para comer o que quiser de fato envolve liberdade?

Não seria mais livre poder optar por não comer essas besteiras por curtos períodos de tempo, e escolher, sem o peso da impulsividade, comer algo de sua escolha uma vez na semana?

A gente acaba nem pensando nisso, apenas seguindo impulsos e comendo até ficar completamente estufado, sem limites, em todas as refeições.

Uma das cenas mais marcantes da animação A Viagem de Chihiro, é o momento onde seus pais encontram um enorme banquete numa cidade supostamente vazia.

Chihiro permanece reticente, deixando claro que não acha uma boa ideia comer toda aquela comida. Mas seus pais não se importam. Seu pai inclusive afirma que possuem muito dinheiro e cartões de crédito, que podem pagar pela comida se precisar.

Os pais de Chihiro sentam-se ao balcão e passam a comer descontroladamente.

Chihiro se afasta irritada e continua explorando a cidade, mas quando retorna, encontra seus pais transformados em porcos e cercados de restos de comida.

A cena é uma clara descrição de como as pessoas se deixam guiar pelos impulsos e se transformam em animais incontroláveis, nos lembrando de uma maneira dura das armadilhas da ganância e de como nossos impulsos são constantemente usados de armadilhas contra nós mesmos.

Curiosamente, porcos também são um histórico símbolo para descrever capitalistas e seu consumo descontrolado de recursos.

E a cena também parece se conectar diretamente com essa ideia. Em nossa sociedade, comer e beber exageradamente são claros sinalizadores de sucesso econômico.

Os pais reforçarem que comerão tudo porque possuem dinheiro para pagar, caso seja necessário, reforça essa ideia.

É ainda mais fácil de perceber onde mora essa a importância da Potência Negativa quando pensamos no consumo de álcool.

Muita gente com um consumo excessivo, mas que não se reconhece como dependente, acredita que beber várias vezes na semana ou praticamente todos os dias, é apenas uma expressão da própria liberdade.

Ao tentar reduzir o consumo de álcool ou simplesmente parar de beber, se depara com a impossibilidade de exercer sua Potência Negativa, a capacidade de poder não beber.

É importante adicionar mais uma dimensão às possibilidades da liberdade, para entendermos que muitas vezes acreditamos que estamos fazendo o que queremos, quando na verdade estamos apenas respondendo aos impulsos e reflexos que nem temos escolha.

Atribuímos escolha ao ato, mas apenas por não entendermos outra forma de justificar.

Alguém que deseja parar de beber, mas não consegue, não está em sua plena liberdade, mas aprisionado por uma força que já não consegue controlar.

Seja por uma pressão externa nas relações humanas, ou por impulsos químicos do cérebro, precisamos reconhecer que muitas vezes atribuímos o título de liberdade às ações que vão contra o que nós de fato queremos.

Se eu estou tentando comer de forma mais saudável, mas não consigo controlar meus impulsos, essa impulsividade está longe de colaborar com a minha própria vontade.

Mas existe outra série televisiva que pode nos ajudar a entender essa percepção:

No finalzinho dos anos 2000 uma série de TV se tornou extremamente popular entre jovens, principalmente entre o publico masculino.

Californication foi lançada em 2007, estrelando o até então conhecido como o ator de Arquivo X, David Duchovny.

Duchoviny interpreta Hank Moody, um famoso escritor que teve sua obra transformada em filme e agora fatura um bom dinheiro.

Hank é desleixado, mas extremamente sedutor. O que faz o personagem ser tão admirado pelos homens, é o fato de conquistar belas mulheres ao longo de toda série, mas sem precisar fazer esforço algum para isso.

Outra marca registrada de Hank é o consumo de álcool e uma alta dose de inconsequência, ele sempre faz o que quer e como quer.

Apesar das orgias, mulheres, drogas e fama, Hank carrega um grande peso nas costas. Ele ama sua esposa e sua filha, mas seus atos impulsivos sempre acabam destruindo sua relação com as duas pessoas que mais ama.

Ao longo da série ele tenta mudar seu comportamento, ser um parceiro melhor e um pai mais presente, mas a mudança nunca dura tempo o bastante.

Hank é um desses personagens que são exemplo de liberdade para muitos homens, mas que claramente é o estereótipo do homem que não é capaz de controlar seus impulsos e vê tudo o que construiu em sua vida sendo destruído.

O mais curioso é que os danos são visíveis durante todo o programa, mas o único referencial que homens jovens acabam extraindo da série, é a ideia de que ser livre é ter muitas parceiras, beber o quanto quiser e agir sem se preocupar com as consequências.

Todos esses exemplos servem para nos ajudar a entender a quantidade de camadas que noção de liberdade pode trazer.

Seja por status social, pressão das relações, impulsos ou ganancia, é possível acreditar que está agindo por liberdade, quando na verdade está indo diretamente contra tudo o que mais deseja.

É por isso que acredito no desenvolvimento de um comportamento disciplinado, com a capacidade de resistir a impulsos de curto prazo, pela possibilidade realização das nossas verdadeiras vontades no futuro, como uma das mais legítimas expressões de liberdade.

É poder escolher não fazer agora algo que sabemos que vai contra nossa própria vontade, até o momento em que decidimos que não será mais um problema.

Mas enquanto não desenvolvermos essa capacidade, vamos continuar confundindo a pressão externa que não controlamos, e até nossa impulsividade interior, com uma suposta liberdade.

Não esqueça de dar 50 claps se você gostou deste texto. É um pequeno gesto que ajuda bastante na divulgação do nosso trabalho.

Startupdareal é autor do livro Este livro não vai te deixar rico, que aborda os bastidores do universo das startups, empreendedorismo e da busca pelo dinheiro.

Livro está disponível em todas as grandes livrarias do Brasil ou através deste link.

--

--

Startup da Real
@startupdareal

Pensamento crítico sobre tudo o que ninguém quer contar para você.